Por Eduardo Adami Advogado, mestrando em Direito Público na UERJ, membro da Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ. Fez sustentação oral na ADPF 635 pelo Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (IARA). No próximo dia 3 de abril, o Supremo Tribunal Federal retoma o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635, também conhecida como a “ADPF das Favelas”. A ação foi ajuizada em 2019 pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) para discutir o estado de coisas inconstitucional da letalidade policial no Rio de Janeiro. Naquele ano, policiais tentaram atirar contra uma moto, mas acertaram Ágatha Félix, de apenas 9 anos, que estava dentro de uma kombi com sua mãe. A menina morreu. Em 2020, durante a pandemia, a polícia matou João Pedro Mattos, de 14 anos. Sua casa foi atingida por mais de 70 disparos, e um deles atravessou sua barriga. Em 2021, agentes de segurança tiraram a vida de Kathlen Romeu, de 24 anos, com um tiro no peito. Mataram não só Kathlen, mas também seu bebê, do qual estava grávida de três meses. Histórias como essas se repetem dia após dia no Rio de Janeiro. Para a maior parte dos cidadãos, a revolta, a tristeza e a indignação perdem espaço para a rotina. A brutalidade se torna normal. Por isso, dar nome e rosto a essas pessoas é essencial para não transformar a violência de suas mortes em meros números e estatísticas frias. Esses casos não são isolados. Quando a ADPF foi ajuizada, o Estado do Rio de Janeiro chegava ao ápice do processo de aumento de sua letalidade policial. Naquele ano, foram 1.814 mortes causadas por policiais fluminenses. Para se ter dimensão, isso é quase 70% a mais do que a letalidade de toda a polícia dos Estados Unidos no mesmo ano. Diante desse quadro, o Supremo Tribunal Federal foi acionado para fazer valer o direito à vida, à segurança e à dignidade da população fluminense, principalmente dos moradores de favelas – em sua maioria, negros. Afinal, as forças de segurança têm seu alvo preferencial. Como disse Emicida, há pele alva e pele alvo: mais da metade dos mortos pela polícia tem entre 12 e 24 anos; são negros em 87% das vezes. Desde 2019, as polícias mataram pessoas negras quase sete vezes mais do que pessoas brancas. Esses problemas têm raízes históricas. De fato, a ADPF das Favelas enfrenta dois passados que ainda não passaram. De um lado, o passado da escravidão negra, que torna corpos negros descartáveis, meros danos colaterais da violência estatal. O desrespeito aos seus direitos não produz a mesma resposta institucional e comoção – são invisíveis. De outro lado, o passado da ditadura militar, que permite às forças de segurança atuarem sem qualquer mecanismo de responsabilização, fazendo uso arbitrário e ilegal da força. Quanto a isso, o Ministério Público e o Poder Judiciário concorrem para a legitimação jurídica dessas mortes, ao validar essa lógica de guerra. No entanto, muito tem sido feito para mudar esse estado de coisas. Desde que o processo teve início, o Supremo Tribunal Federal já proferiu três decisões colegiadas que impuseram uma séria de obrigações ao Estado do Rio de Janeiro. Em 2020, em meio à pandemia do COVID-19 e às constantes operações policiais em favelas do Rio, o STF determinou que tais incursões só deveriam ocorrer em casos “absolutamente excepcionais”, que precisavam ser justificados por escrito e comunicados imediatamente ao Ministério Público, órgão competente pela fiscalização da atividade policial. A avaliação sobre a excepcionalidade das operações, porém, sempre foi competência da própria polícia, com supervisão do MPRJ. Os dados demonstram que a decisão só foi capaz de reduzir o volume de operações nos seus quatro primeiros meses de vigência; depois disso, passou a ser descumprida. No mesmo mês, o tribunal proferiu decisão sobre a medida cautelar postulada pelo autor da ação. Com isso, fixou algumas regras para operações policiais. O uso de helicópteros passou a ser permitido apenas em casos de “estrita necessidade”, com a necessária produção de um relatório detalhado após a operação. As operações próximas a escolas e hospitais deveriam ser excepcionais, e justificadas em até 24 horas. O Supremo também proibiu a remoção indevida de corpos e a destruição de vestígios em operações. Por fim, estabeleceu que os casos de mortes ou violações envolvendo policiais deveriam ser investigados pelo Ministério Público, e não pela própria polícia. Dois anos depois, em fevereiro de 2022, o STF ampliou as medidas concedidas. Assim, determinou que o Estado do Rio de Janeiro elaborasse um “Plano de Redução de Letalidade”, como já determinado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília. O Supremo também fixou prazo para que o Estado implementasse o uso obrigatório de câmeras nos uniformes e viaturas policiais. Quanto às buscas em domicílios, além de proibir invasões noturnas sem mandado – salvo em caso de flagrante delito –, reconheceu que denúncias anônimas não podem ser a única justificativa, devendo ser corroboradas por outros elementos de investigação. E ainda obrigou que o Estado oferecesse ambulâncias nas ações planejadas que apresentassem risco de confronto armado. Portanto, além de estabelecer regras mínimas para a realização de operações policiais, o STF também atuou sobre a fiscalização realizada pelo Ministério Público. Tais providências tiveram como objetivo garantir a proteção de civis, a transparência e a accountability por parte do Estado do Rio de Janeiro, especialmente por suas forças de segurança. Ademais, em que pese o recorte local da ação, o debate da constitucionalização da segurança pública tem servido ao país inteiro, como bem demonstra o avanço das discussões no Ministério da Justiça sobre o uso de câmeras corporais pelas instituições policiais. Essas medidas serviram ao seu propósito. Até aqui, a ADPF 635 tem produzido resultados significativos. A letalidade policial caiu de 1.814, em 2019, para 699 mortes em 2024 – uma redução de mais de 60%. E isso ocorreu sem que houvesse piora nos principais indicadores estratégicos de criminalidade. Na verdade, nesse período, todos eles apresentaram melhoras. Segundo dados oficiais do Instituto de Segurança Pública