Registro da assinatura do decreto que instituiu o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para a Valorização da População Negra. Na imagem, o então presidente Fernando Henrique Cardoso, acompanhado de ministros de Estado e de Edson Arantes do Nascimento, Pelé, que à época ocupava o cargo de Ministro dos Esportes. Como resposta à Marcha Zumbi dos Palmares, em 1995, o governo de Fernando Henrique Cardoso criou, por decreto, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) com a finalidade de desenvolver políticas para a valorização da população negra, contando com ampla participação de entidades nacionais. O documento, reproduzido pelo Ìrohìn, traz o resultado do trabalho realizado pelo GTI. São detalhadas as ações e propostas em 16 áreas temáticas, como trabalho e emprego, comunicação, educação, saúde, cultura negra, religião, ação afirmativa e regularização das terras de remanescentes de quilombos. Inclui ainda anexos sobre legislação, políticas de saúde específicas (como o programa de anemia falciforme) e diretrizes para ações afirmativas. Trata-se de um registro histórico relevante para o entendimento das primeiras articulações governamentais sistemáticas em prol da população negra no Brasil pós-redemocratização, refletindo a interlocução entre Estado e movimento negro no final da década de 1990. Confira o documento a seguir:
Em audiência na Câmara, Edson Cardoso critica inação do Estado e aponta sequestro do orçamento como obstáculo à reparação racial
Brasília — Em audiência pública realizada em 29 de abril, o jornalista e educador Edson Lopes Cardoso afirmou que o Estado brasileiro falha em cumprir sua obrigação constitucional de combater o racismo e promover ações reparatórias. A declaração foi feita durante sessão do Centro de Estudos e Debates Estratégicos (CEDES) da Câmara dos Deputados, que discutiu o tema “O racismo na história, nas estruturas sociais e nas instituições: diagnósticos e propostas de superação”. Cardoso, que dirige o Centro de Documentação e Memória Afro-Brasileira Ìrohìn, criticou a ausência de medidas efetivas por parte do poder público. “Nós temos quilos de propostas. O problema é: como levar o Estado a agir?”, questionou. O militante histórico do movimento negro também associou a fragilidade das políticas públicas de combate ao racismo à falta de recursos orçamentários. “Com o orçamento do jeito que está, adianta falar em política pública? Vamos ter que resgatar o orçamento para que ele volte a ser público. Senão, não há política, não há reparação, não há futuro”, disse. Durante a audiência, Cardoso destacou ainda a retirada do fundo previsto no Estatuto da Igualdade Racial como exemplo de esvaziamento deliberado da política antirracista. “Tiraram o financiamento da política. Ficou um bando de palavras vazias.” Para o educador, o racismo no Brasil opera como um sistema de hierarquização da humanidade. “O racismo é exatamente negar a igualdade dos seres humanos. Ele define que uns são mais humanos do que outros. E se uns são mais humanos do que outros, não há democracia possível.” Cardoso também sugeriu à Câmara que publique uma separata reunindo os discursos do advogado Manoel da Mota Monteiro Lopes, primeiro deputado negro eleito na República, cujo mandato foi alvo de contestação no início do século XX. “Essa seria uma enorme contribuição à representatividade negra no Parlamento”, afirmou. A audiência integra o ciclo de debates coordenado pelas deputadas Dandara (PT-MG) e Benedita da Silva (PT-RJ), com o objetivo de formular diagnósticos e propostas legislativas relacionadas à equidade racial. Segundo Dandara, a iniciativa do CEDES é inédita no tema. “Este é o primeiro estudo sobre racismo e reparação produzido pelo Centro em mais de 20 anos. E ele só faz sentido se estiver ancorado nos acúmulos do movimento negro”, afirmou. Também participaram da mesa o advogado Daniel Teixeira, diretor do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT); a professora da UnB Fernanda Lima da Silva; e o sociólogo Luiz Augusto Campos, coordenador do Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (GEMAA). O presidente do CEDES, deputado Márcio Jerry (PCdoB-MA), anunciou que os resultados do estudo serão consolidados em publicações e distribuídos para Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e bibliotecas públicas de todo o país.
Homenagem a Magno Cruz (CCN-MA), grande liderança do Movimento Negro, falecido em 2010
Magno José Cruz (1954-2010) foi Militante do Movimento Negro, Engenheiro civil e defensor dos direitos humanos Magno Cruz foi uma das lideranças mais respeitadas dos movimentos sociais do Maranhão. Nascido em 1954, dedicou mais de três décadas de sua vida à luta pela igualdade racial, tornando-se uma referência no estado e no Brasil. Trajetória Como presidente do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN-MA) por duas gestões e presidente de honra da instituição, Magno foi responsável por fortalecer a entidade e construir um legado duradouro na defesa das comunidades quilombolas e na implementação de políticas afirmativas para a população negra. Sua militância se estendia além do Movimento Negro. Foi dirigente do Sindicato dos Urbanitários, membro da Sociedade Maranhense de Direitos Humanos e filiado ao Partido dos Trabalhadores (PT). Falecido em 3 de agosto de 2010, em São Luís, Magno Cruz deixou três filhos e um legado de luta que continua inspirando novas gerações de militantes. Veja vídeo em sua homenagem:
Programa “Já É” Oferece Apoio a Jovens Negros para Ingresso na Universidade
O Fundo Baobá lançou a segunda edição do programa “Já É: Educação e Equidade Racial“, uma iniciativa que visa oferecer suporte completo para jovens negros que desejam ingressar no ensino superior. O programa combina apoio financeiro, educacional e psicossocial, com o objetivo de ampliar oportunidades de trabalho e desenvolvimento pessoal para pessoas negras em todo o Brasil. Benefícios oferecidos Os participantes selecionados terão acesso a diversos benefícios: Critérios de participação Para participar do programa, os candidatos devem atender aos seguintes requisitos: Inscrições As inscrições para o programa “Já É” estão abertas até o dia 6 de junho de 2025. Os interessados devem acessar o site oficial do programa para mais informações e para realizar sua inscrição.
Brado Negro lança nova plataforma digital
Foi lançada a Plataforma Brado Negro, ambiente virtual que registra e expande o projeto “O Racismo no Banco dos Réus“, realizado em escolas públicas do Distrito Federal durante o Novembro Negro. O portal reúne imagens das apresentações teatrais, depoimentos e materiais pedagógicos sobre questões étnico-raciais, sistema carcerário e políticas públicas. Já disponível em https://educa.bradonegro.com/login, a plataforma exige apenas um cadastro simples para acesso completo aos conteúdos. A iniciativa visa ampliar o alcance das discussões sobre racismo promovidas originalmente nas instituições de ensino. Para mais informações, acesse o perfil Brado Negro (@bradonegro) no Instagram.
Uma nova configuração da política racial
A institucionalização da questão racial é o nosso ganho, mas também pode ser a nossa derrota como atores políticos constituídos a partir do movimento social. *Por Luiza Bairros, texto publicado no Jornal ÌROHÌN, em ago-set/2006* As questões que apresento neste texto são motivadas pelo meu interesse em entender o que mudou na política racial brasileira, nas três últimas décadas, em consequência da ação do Movimento Negro. Considero que o aspecto central desta mudança é a falência da democracia racial como um modelo hegemônico, capaz de explicar as relações sociais entre brancos e negros no Brasil. Em retrospecto, identifico três momentos na nossa história recente que tornaram mais evidente o processo lento de morte desse mito: a criação do Movimento Negro Unificado/MNU (1978), que resultou de um processo que envolveu vários grupos negros, principalmente no sul do Brasil; o fracasso que impusemos às comemorações dos 100 anos da abolição e a inclusão do racismo como crime inafiançável na Constituição, em 1988; a Marcha Zumbi dos Palmares, contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, que realizamos em 1995; e a nossa participação no processo da lll Conferência Mundial contra o Racismo, em 2001. Afirmar a falência do mito da democracia racial, significa que hoje, no Brasil, não existe mais uma narrativa hegemônica que consiga, com a mesma força da formulação anterior, “naturalizar” tanto os privilégios de ser branco, como as desvantagens de ser negro. Também significa constatar que foi rompido o consenso que existia nas elites, de direita e de esquerda, sobre as formas de pensar a sociedade brasileira em termos raciais. Até por isso, entre elas, hoje, também não há propostas consensuais de tratamento do racismo e das desigualdades raciais. Por um lado, verifica-se que o Estado brasileiro, de algum modo, incorporou iniciativas visando a superação das desigualdades raciais – seja divulgando estatísticas desagregadas por cor; adotando políticas afirmativas; criando agendas governamentais para lidar com a questão racial; ou debatendo o projeto de lei do Estatuto da Igualdade Racial. Por outro lado, setores deste mesmo Estado posicionam-se de forma abertamente conflitante sobre as iniciativas que, supostamente, deveriam apoiar. Do mesmo modo, no campo acadêmico e nos meios de comunicação a cisão se verifica, principalmente no que se refere às propostas de ações afirmativas nas universidades públicas. Embora estas iniciativas ainda sejam limitadas, elas colidem com o postulado da igualdade de oportunidades, um dos principais consensos criados com base na crença na democracia racial. Por isso, são sistematicamente contestadas pelos que se beneficiam do racismo e que, agora, livres dos limites impostos pela etiqueta racialmente democrática, manifestam suas posições racistas, sem disfarces. Cada modelo racial gera formas de luta que lhe são compatíveis. E, se o modelo que tradicionalmente existia no Brasil se esgotou, então isto também tem impacto sobre o Movimento Negro. É evidente que, a partir de uma pauta geral de combate ao racismo, que vigorou até os anos 80, foram se especificando diversas configurações da identidade racial e modos diversos de organização política, que expressam o fato de que os lugares que ocupamos configuram diferentes modos de experimentar o racismo e seus efeitos. Assim, vivemos em meio a uma maior tendência à organização tanto por segmentos da população negra – mulheres, lésbicas, comunidades rurais quilombolas, juventude – como por áreas da vida social – arte, cultura e religiões de matriz africana, saúde, educação, comunicação, pesquisa, etc. Às chamadas “entidades negras”, nascidas nos anos 70 e 80, geralmente devotadas a um amplo espectro de temas concernentes à população negra, hoje se soma um leque de organizações mais ou menos estruturadas, que incluem, além das ONGs, redes e fóruns. A diversidade na “especificação de identidades negras” revela, por um lado, o amadurecimento da nossa compreensão do racismo como um fenômeno multifacetado pelas suas intersecções com diferentes dimensões da nossa vida em sociedade. Por outro, coloca a possibilidade de uma fragmentação, na hipótese de que cada segmento que se reivindica como Movimento Negro, ou que emergiu no seu rastro, passe a agir como se fosse, individualmente, capaz de responder aos desafios desta conjuntura. Ainda que de modo diferente do que ocorre nas elites, não há dúvida de que também já não temos uma base mais sólida para criar consensos, para elaborar leituras próprias sobre como o racismo passou a operar em consequência de nossa própria ação, e as estratégias para o seu enfrentamento. Tanto é assim, que nenhuma das duas posições divergentes quanto às motivações da Marcha Zumbi +10, realizada em Brasília, em novembro de 2005, conseguiu gerar um processo que, potencializado pela visibilidade da questão racial no processo político, pudesse vir a apontar alternativas para o encaminhamento das nossas lutas. Neste novo cenário, portanto, me parece que o grande desafio é assegurar que os termos da disputa por um outro modelo, ou uma outra narrativa sobre as relações sociais entre brancos e negros no Brasil, sejam definidos a nosso favor. O que temos feito até o momento, sem dúvida, rompeu a hegemonia branca na interpretação da experiência negra no Brasil. Contudo, isto ainda não tem sido suficiente para garantir a nossa hegemonia na definição do que é racismo, do vocabulário aceitável para discuti-lo e das estratégias necessárias para corrigir os privilégios e as desvantagens sociais associados ao pertencimento racial. Sem pretender dar conta da reflexão que eu mesma propus, adianto o que me parece minimamente necessário para efetivar a nossa participação no novo quadro da política racial no Brasil. Construindo consensos sobre a sua nova configuração e, dentro dela, sobre o Movimento Negro, seria preciso fortalecer as condições de produção de nossos discursos e nossas práticas em vários âmbitos – acadêmico, artístico, nas organizações politicas de base, nos veículos de comunicação, entre outros. Paralelamente, seria também necessário aprofundar a compreensão sobre o papel do Estado, no que tange a seus limites e possibilidades de internalizar aspectos importante de nossas demandas, que só podem se realizar pela via das ações públicas. lsso implica considerar novos atores, mulheres e homens, geralmente negros, que se inseriram em organismos de governo – federal,
Tese de Doutorado – Pretoguês: re-existência das línguas africanas
O argumento central é de que os chamados ‘erros’ de português, por se afastarem da norma padrão da língua portuguesa, na verdade, ‘fazem parte do processo evolutivo do português em contato com as línguas africanas Por América Lúcia Silva Cesar Em boa hora tenho notícia, através do Prof. Dr. Edson Cardoso, da tese intitulada Pretoguês: um estudo educacional a respeito do português influenciado pelas línguas africanas nas escolas de Angola, Brasil e Moçambique, de autoria de Sheila Perina de Souza, realizada sob orientação dos professores Valdir Bazortto e Daniel Nivagara, no âmbito do Convênio Acadêmico Institucional celebrado entre a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e a Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Pedagógica de Maputo. Defendida em 2024, em 280 páginas escritas em português, a tese se propõe a analisar as imagens do português influenciado pelas línguas africanas nos discursos de professoras de escolas angolanas, brasileiras e moçambicanas. Com isso, pretende contribuir para uma pedagogia multilingue, antirracista e culturalmente sensível, no aprendizado da leitura em sala de aula. O argumento central é de que os chamados “erros” de português, por se afastarem da norma padrão da língua portuguesa, na verdade, “fazem parte do processo evolutivo do português em contato com as línguas africanas” (pág. 10), o que denomina pretoguês. Inspirada em Lélia Gonzalez e Mingas, define como pretoguês as variedades populares do português influenciadas pelas línguas africanas e defende que a estigmatização do pretoguês no contexto escolar faz parte de um sistema amplo de opressão social, racial e étnica, que não se restringe apenas ao aspecto linguístico. Ao cabo, postula o ensino do pretoguês na escola, no bojo de uma pedagogia mais sintonizada com a realidade linguística e cultural dos seus falantes. Interessante observar que, já no início do texto, constata-se a coerência da autora no enfrentamento à invisibilização da presença das línguas africanas na escola, ao apresentar a tradução do resumo não apenas numa língua europeia, como é comum em textos acadêmicos deste tipo, mas também na língua changana. E no decorrer do estudo, observa-se essa coerência também no embasamento teórico escolhido, ao trazer conceitos como necropolítica, colonialismo, e o próprio pretoguês, baseados nas contribuições de autores africanos ou de ascendência africana, comprometidos com a crítica ao enraizamento do racismo no discurso científico e pedagógico. O capítulo 1, com 92 páginas, está dividido em duas partes. Na primeira parte, discute as implicações do colonialismo em suas estratégias de obstrução das línguas nativas em Angola, Brasil e Mocambique, e como a necropolítica atua no panorama das línguas, principalmente no português falado. Nessa parte também a autora demonstra como o pretoguês se apresenta nas diversas variedades do português falado como expressão de resistência cultural e política dos povos. Resumindo: o pretoguês como re-existência das línguas africanas na fricção com as políticas linguísticas do colonialismo. No segundo capítulo, vai olhar para as imagens e atitudes linguísticas no discurso de educadores e reafirmar o pretoguês como criação coletiva, tecnologia popular africana, que se legitima nas compressões comunicativas e que merecem consideração e estudo no ensino formal nas escolas. E nos três últimos capítulos apresenta a pesquisa nos diversos contextos dos países analisadas, com farto material etnográfico e linguístico. Fica evidente o percurso interseccional das práticas e políticas linguísticas a aproximar o pretoguês de uma multilíngua que congrega contribuições de diversas línguas africanas e do português. Pelo fôlego do trabalho, é natural que haja lacunas, principalmente quando se trata de uma descrição mais exaustiva das implicações das línguas nativas – não só as africanas- no que se chama português falado no Brasil, que se supõe possam também influenciar o pretoguês brasileiro. Contudo, a descrição linguística não é o foco do trabalho, e sim a análise dos discursos que moldam o imaginário das línguas em questão. Trata-se por isso de um estudo valiosíssimo por enfrentar e detalhar o apagamento histórico da complexidade dos usos linguísticos na diversidade enorme de falantes e realidades socioculturais no território brasileiro com foco na contribuição das línguas africanas. Por sua abrangência, abraçando também as implicações das línguas em Angola e Moçambique, o trabalho merece ser lido e debatido não só no interior das universidades mas principalmente nos espaços de formação de professores e professoras, esperando que ele tenha repercussões nos currículos escolares do ensino fundamental ao universitário. E mais do que isso, escrito numa linguagem acessível e de agradável leitura, deve ser visitado por todos e todas que se interessem em compreender melhor o panorama das contribuições das línguas africanas na relação com a língua portuguesa nesses três países.
Colonialismo, Racismo e o Humanismo Radical de Sylvia Wynter
Por Kleber Chagas Cerqueira* À memória de meu grande amigo Astral Melo En realidad, el racismo está inscrito en el sistema (…) La conquista se hizo por la violencia; la superexplotación y la opresión exigen el mantenimiento de la violencia, y por ello la presencia del ejército. Allí no habría contradicción si el terror reinase en toda tierra: pero el colono disfruta allí, en la metrópoli, de los derechos democráticos que el sistema colonial niega a los colonizados; (…) El colonialismo niega los derechos del hombre a los hombres que ha sometido por la violencia, que mantiene por la fuerza en la miseria y en la ignorancia; por lo tanto, como diría Marx, en estado de “subhumanidad”. J. P. Sartre. Colonialismo y Neocolonialismo. (Situations, V). Editorial Lozada. Buenos Aires. 1965. Refletir sobre as origens históricas do racismo nos remete ao escravismo, ao complexo sociocultural, jurídico e político que justifica a escravização de um homem, ou de uma mulher, por outro homem, ou por outra mulher. Se as primeiras experiências humanas de escravização se deram num contexto transparente de violência direta (escravização por guerras de conquistas ou por dívidas), a prática foi, ao longo do tempo, sendo “aprimorada”, substituída a transparência da violência pura e simples por dispositivos jurídicos, políticos e culturais (especialmente religiosos) que justificavam, por suposta superioridade de raça, ou negação da própria humanidade, a escravização de uns por outros. Nessa perspectiva histórica, não foi o colonialismo que inventou o racismo, já que há muitos registros de escravização em sociedades humanas não colonialistas. Mas foi o colonialismo que imprimiu ao racismo escala industrial, especialmente em sua versão europeia: na virada do século XIX para o século XX, mais de três quartos das regiões do planeta e mais de quatro quintos de sua população já haviam sido ou ainda eram colônias de potências imperialistas europeias. Ou “protetorados”, na fórmula fofa e paternal do Império Britânico, o maior de todos à época, aquele onde “o sol nunca se punha”. Aliás, se uma das bases da chamada acumulação primitiva de capital, essencial à revolução industrial e estopim do sistema mundial moderno, foi o colonialismo da era moderna, não podemos esquecer que a cor dessa acumulação foi a cor preta, com a transformação de pessoas africanas em mercadorias para as Américas. Daí uma questão de profundas implicações filosóficas e epistemológicas: como foi possível ao Ocidente europeu renascentista, dos séculos XIII a XIX, falar em humanismo num mundo que desumanizava a maioria dos seres humanos? A esse respeito, uma referência muito potente, e ainda lamentavelmente pouco conhecida no Brasil, é a pensadora cubano-jamaicana Sylvia Wynter, cujo primeiro texto publicado em língua portuguesa compõe a brilhante antologia “Pensamento Negro Radical”, da N1 Edições, de dezembro de 2021, organizada por Clara Barzaghi, Stella Z. Paterniani e André Arias. Sylvia Wynter se dedicou a investigar o humanismo e a história da humanidade a partir da crítica da universalização do homem branco europeu como parâmetro para humanidade, empreendimento que termina por desconstruir o próprio conceito ocidental de modernidade. A crítica de Sylvia Wynter propõe uma forma radical de humanismo, herdeira dos mistérios das marés, não das caravelas que as tentaram colonizar.1 Partindo do reencontro com sua ancestralidade fincada na economia das plantations caribenhas, realidade socioeconômica praticamente idêntica à dos latifúndios escravocratas que colonizaram o Brasil, Sylvia Wynter identifica ali a desumanização das negras e negros, das índias e índios, como condição de reprodução daquele sistema colonial. Essa herança colonial nos impediu de realizar plenamente a emancipação humana, uma vez que este sistema se baseava na destituição de humanidade de boa parte dos seres humanos. Para Wynter, assim como para Fanon (2008), a desumanização das pessoas negras implica a desumanização de toda a humanidade. Em seus estudos e escritos, batendo-se contra a “lógica-plantation da universidade”, que pressupõe a universalidade da história branca europeia, Sylvia Wynter se propunha a uma revolução intelectual, a partir de verdadeira refundação epistemológica, que quebrasse essa lógica colonialista e refundasse o humanismo em bases radicais, como emancipação completa, sem exceções, do ser humano. Tendo ido estudar artes e literatura ainda jovem, no King’s Colege, em Londres, quando a Jamaica ainda era parte do Império Britânico, Sylvia torna-se professora na Universidade das Índias Ocidentais (UWI), responsável pela cátedra de literatura hispânica e escreve, em 1962, ano em que a Jamaica se torna independente, seu primeiro e único romance: The Hills of Hebron, cujo título original era The End of Exile (o fim do exílio), em que buscava anunciar o fim da história exilada da Jamaica e a refundação dessa história, desafiando “o sistema central de crenças sobre as quais nossas sociedades foram fundadas, a crença de que a negritude seja um dado de inferioridade e da branquitude, um dado de superioridade”.2 Em seu ativismo artístico e político, Sylvia também foi uma das fundadoras do Jamaica Journal, para o qual contribuiu com vários artigos e ensaios, e escreveu o espetáculo Maskarade, peça exemplar do teatro jamaicano pós-independência. Entre 1974 e 1977, foi professora convidada no Departamento de Literatura da Universidade da Califórnia, em San Diego, para coordenar um programa interdisciplinar sobre literatura do Terceiro Mundo. Em 1977, vinculou-se à Universidade de Stanford, como responsável pela cátedra de Estudos Africanos e Afro-americanos, e aí permaneceu como professora emérita, em reconhecimento por sua trajetória de pesquisa e reflexão sobre a formação do Caribe na modernidade a partir da invasão colonial. No artigo citado anteriormente, que compõe a antologia “Pensamento Negro Radical”, No humans involved: an Open Letter to My Colleagues (Nenhum Humano Envolvido: uma carta aberta a meus colegas), Wynter parte do fato noticiado pela imprensa estadunidense, chocante, ainda que muito didático, de que funcionários públicos do sistema judicial de Los Angeles rotineiramente usavam o acrônimo “NHI”, significando “No humans involved” (literalmente: nenhum humano envolvido!) para se referirem a qualquer caso envolvendo violação de direitos de homens negros jovens desempregados, habitantes dos guetos do centro da cidade.3 Evidentemente, observa ela, ao classificarem essas pessoas dessa maneira, aqueles funcionários públicos estavam concedendo sinal verde para a polícia de Los
Midiã Noelle lança livro-guia para comunicação antirracista
Já estreado em Brasília e Salvador, o próximo lançamento será em Recife, na programação do evento Conecta Latinas, no dia 24 de maio *Ramíla Moura Mendes Vieira, para o Portal Ìrohìn Fotos por Duda Rodrigues A escritora e jornalista negra Midiã Noelle lançou em Brasília, no início de abril, o seu primeiro livro: Comunicação Antirracista – Um guia para se comunicar com todas as pessoas em todos os lugares. Em 191 páginas, Midiã conecta sua experiência profissional como jornalista às suas vivências pessoais e sua intimidade com o exercício da comunicação na prática. Baiana, a jornalista relembra no livro que uma das suas referências para abertura de possibilidades e horizontes é Milton Santos, aclamado geógrafo brasileiro e uma das figuras mais respeitadas mundialmente, cuja história e imagem estavam presentes nas paredes de uma das escolas em que ela estudou. No livro de bolso, Midiã homenageia majoritariamente mulheres negras fundamentais em sua formação pessoal e profissional e, ao citar músicas e textos de criadores negros, faz uma ode ao esforço coletivo para que a comunicação seja de fato um instrumento de diálogo em prol de uma sociedade mais justa, equânime e sem racismo. Memória do nosso tempo Segundo Midiã, a proposta do livro também é de construção da memória do nosso tempo. “Porque a construção da memória do nosso tempo também precisa ser dita: quem são esses comunicadores desse momento que estão lutando pela pauta antirracista no Brasil, e também o reconhecimento de que a comunicação antirracista é para todas as pessoas, em todos os lugares”, defende. Para ela, todas as pessoas têm lugar de fala no enfrentamento ao racismo, a partir de sua própria narrativa, da construção de visão de mundo, da linguagem utilizada, da cultura e do território. Midiã ressalta ainda que a comunicação não deve ser vista apenas como um instrumento, mas como uma estratégia que molda perspectivas, derruba e ergue governos, define o que é considerado belo ou aceitável, e que precisa ser pensada de forma antirracista, antipunitivista e antiproibicionista para garantir a humanidade da população negra. Ao conectar sua trajetória profissional com as pessoas que a formaram, Midiã cita nome e sobrenome de diversas profissionais que a guiaram em seu percurso. As jornalistas e doutoras em Comunicação Juliana César Nunes e Kelly Quirino são mencionadas no capítulo sobre mídias negras, no qual ela narra suas experiências ao entrevistá-las em programas como Café com Mídia e Conexões Negras, reconhecendo-as como comunicadoras que estão, ao lado de outros e outras lideranças, na linha de frente da comunicação antirracista no Brasil. Comunicação antirracista em Brasília Juliana César Nunes, que esteve presente no lançamento em Brasília, afirma que o livro de Midiã é um presente para a comunicação e para a luta da população negra. “A publicação de autoria da Midiã tem um valor imenso não apenas pela sua autoria individual, mas também coletiva, principalmente pela trajetória que levou à publicação do livro: a trajetória de uma jornalista, comunicadora negra, que tem se dedicado a construir conceitos e práticas de comunicação que contribuem para a informação, empoderamento e visibilidade da população negra”, destacou. A jornalista ressaltou ainda que a obra oferece estratégias importantes para comunicadores profissionais e também para pessoas que atuam em redes sociais ou outras práticas comunicacionais, profissionais ou não. “O livro é um presente para a comunicação brasileira e para a luta do povo negro”, diz. “Como costumamos dizer, esses búzios que são devidamente colocados e de maneira muito estratégica, a nossa escrita, a escrevivência de mulheres negras, são búzios, pérolas, pedras preciosas que se colocam para nós e para a sociedade como um todo para ser esse mapa que nos guiam pelo caminho da comunicação antirracista”, conclui. Kelly Quirino, professora da Universidade Católica de Brasília (UCB), lamentou não ter comparecido ao lançamento em Brasília, mas expressou orgulho ao saber que foi citada no livro. “Reconhecer o trabalho que eu tenho feito na universidade e no movimento social me deixa muito feliz e orgulhosa no sentido de que estou fazendo um bom trabalho em relação a uma comunicação antirracista no nosso país”, afirmou. Kelly também ressaltou que soma aos esforços apontados no livro de Midiã ao atuar como fonte para a imprensa do Distrito Federal, explicando conceitos de raça e racismo, ajudando no combate ao racismo e formando novos jornalistas com consciência racial. Para todas as pessoas, em todos os lugares Com linguagem simples e humanizada, Midiã narra suas inspirações na comunicação desde as vivências familiares em locadoras de vídeo ou com parentes fotógrafos e seu profundo respeito aos seus mais velhos que a ensinaram na prática como respeitar todas as pessoas. Ela defende que o ato de comunicar é um direito de todos e todas, sendo além de instrumento de formação da opinião pública, uma ferramenta importante para a mudança de comportamentos. Midiã também chama atenção para o racismo como determinante social da saúde, especialmente para mulheres negras. No capítulo “Racismo e Mídia”, ela defende que informações como o fato de que 90% das mortes maternas poderiam ser evitadas com atendimento adequado precisam ser amplamente divulgadas pelos meios de comunicação como forma de alerta e denúncia, citando o caso da morte da gestante negra Alyne Pimentel como um exemplo de tragédia que poderia ter sido evitada. Em sua pesquisa de mestrado intitulada Causa Mortis: Racismo, a advogada, mestre em Direitos Humanos e especialista em Gestão e Políticas Públicas Ilka Teodoro analisa a relação entre racismo e morte evitável de mulheres. Para Ilka, que esteve no lançamento do livro de Midiã na capital do país, a comunicação pode sim ser uma ação estratégica para o enfrentamento ao racismo e à prevenção de mortes evitáveis. “Na minha pesquisa, um dos achados é a relevância da comunicação para a não naturalização ou banalização, divulgação dos dados e prevenção dessas mortes. E o livro de Midiã Noelle vem esmiuçar como fazer, apontando caminhos e estratégias eficazes para evitar o apagamento dessas informações”, avalia. Para Ilka, trata-se de uma leitura obrigatória. “Uma alegria poder acompanhar o lançamento dessa ‘obra-ferramenta’ antirracista”,
Sankofa: Reparação e Bem Viver
Rebeca Oliveira Duarte Educadora e ativista antirracista. É professora de Educação das Relações Étnico-Raciais da UFRPE e integrante do NEAB/UFRPE. Foi advogada do SOS Racismo/PE e do Observatório Negro. Falar sobre mudanças sociais, em um contexto de longa transição de sistemas políticos e econômicos, precisa começar pela lembrança de que o mundo nunca foi fácil. Sempre foi, globalmente, disputa; nossa história é manifesta em tensões territoriais, confrontos de grupos, em busca incessante de adaptação ao meio, elaboração e construção de conhecimentos próprios para essa adaptação e para a produção de elementos essenciais à vida. Mas é fato que, com o colapso global provocado pelo capitalismo, e com o movimento de re-hegemonização do nazifascismo, põem-se em ameaça contínua e crescente as pouquíssimas conquistas dos movimentos de resistência dos grupos sociais subalternizados. Isso nos dá a percepção vívida de que pouco avançamos nos derradeiros anos em direção a um mundo de justiça social. O apelo midiático é de “fim dos tempos”. Mesmo que tenhamos o registro histórico de vários “finais de mundo”, a sensação geral parece apontar a uma desmobilização em torno de projetos concretos de um mundo novo e da esperança de que este seja possível. Apesar de que o colapso global seja uma “realidade” apresentada como um cenário distópico de sociedades controladas por inteligência artificial, o tecnocapitalismo genocida não é o fim da história, nem de nossas esperanças. Um lembrete óbvio, mas necessário. Vivemos História, que é processo, ação e transformação. Mas não uma História linear e determinista; seguindo Sankofa, a circularidade do Tempo permite que o percurso passado / futuro nos ensine, nos eduque e nos oriente no caminho que seguimos. Sankofa, como parte de uma cosmopercepção afrodiaspórica, dialoga com o Sumak Kawsay (Bien Vivir) andino, em que a integralidade das nossas relações interseres e intertempos nos retira do especismo, do antropocentrismo, do racismo, do imediatismo e do individualismo que estão na base do atual colapso da humanidade. Percebam que se trata de projetos não apenas espirituais, mas também socioeconômicos, de mundo. Essa integralidade nos reorganiza em um mundo diverso. É através de o que é esse mundo diverso que proponho pensarmos no projeto de Reparação. Ou, em outras palavras: imperioso compreender que tratar de Reparação em mundos forjados pelo racismo, como elemento estrutural e estruturante, é tratar da preparação para um outro mundo possível, esse mundo diverso, que não pode ser lido de forma reta, linear e desenvolvimentista por ser fruto da circularidade da Vida. Vejam bem: o sentido de “reparar”, no modo linear, é buscar corrigir algo feito no passado que causou um dano. No campo do conceito cunhado pelo Movimento Negro, estamos falando de danos reais no contexto do racismo, que são muitos, imensos e complexos, incrustrados na formação mesma dos estados ficcionalmente “nacionais”. As perguntas que acompanham esse tema são: é possível reparar a escravização e todas as torturas vividas pelos povos negros e indígenas a partir dela? É possível reparar, ainda nesse sentido, as políticas eugenistas de limpeza racial que resultaram na violência policial sistêmica, no encarceramento massivo da população negra e nas profundas assimetrias socioeconômicas? Ou, em outras palavras, de que forma políticas públicas em um Estado racista vão de fato reparar os danos de algo que a sua própria estrutura fundamental fomenta? Corremos o risco, nesse debate, de confundirmos a Reparação com a Mitigação se nos mantivermos discutindo políticas reparativas com os mesmos instrumentos institucionais causadores dos danos que queremos reparar. Aqui temos a distinção necessária entre reparar e mitigar. A Reparação, como conceito, precisa vir em torno de um projeto de mundo diverso na circularidade do Tempo de Sankofa e do Sumak Kawsay que ponha os povos subalternizados de hoje no lugar de decisão sobre o mundo que quer viver. É um movimento que “volta” ao passado para retomar um novo ponto de partida desde lá. Quando se diz que Exu mata ontem um pássaro com uma pedra que ele só atirou hoje, temos a lição necessária para saber quais passos precisamos dar para resolver um problema: voltar ao exato ponto em que esse problema foi projetado. Essa cosmopercepção circular aqui proposta, para tratar de Reparação, é algo que será mais simples compreender quando não pensamos em reparar olhando a vida no contexto da linearidade. Voltar ao ponto do passado em que os danos futuros foram projetados é voltar à encruzilhada do Tempo e retomar as outras possibilidades de mundo, que ali não foram seguidas, e adotar nossas escolhas que àquele ponto não fora possível fazer. Enfim, é negar veementemente o fim da História e não compactuar com a visão linear que nega Sankofa e que joga o Bien Vivir em uma condição de utopia. É negar a ideologia que nos impõe como fato natural e imutável o Estado Nacional e sua estrutura racista, o capitalismo e sua exploração de nossas forças vitais, e que nos retira da realidade ancestral de que, sim, temos outras formas organizativas, outros projetos e outras práticas de mundo possível em que somos de fato participantes. Para lutarmos por Reparação, precisamos primeiramente reconhecer que o pensamento afrodiaspórico e dos povos de Abya Yala têm outros projetos de mundo e de sociedades, e assim como determinados segmentos sociais se organizam em defesa de projetos eurocentrados de capitalismo e socialismo, por exemplo, podemos nos organizar politicamente em defesa desses outros projetos. O Bem Viver enquanto projeto de mundo, com a percepção do Sankofa, pode retirar-nos dessa ideia linear e determinista da História e nos fazer acessar a circularidade do Tempo, retomando-nos como o sujeito da encruzilhada, capaz de seguir o outro caminho não seguido, mas em potência. É sobre retomar o papel de sujeitos integrados e coletivos, desde sempre. Óbvio que “quem tem fome, tem pressa”. Precisamos hoje enfrentar o mundo posto, no termo que ele se nos apresenta. Daí que as políticas públicas, vindas de um Estado estruturalmente racista, são o reconhecimento necessário das profundas injustiças praticadas por esse mesmo Estado. Tais políticas e ações, embora não sejam uma real Reparação, são a Mitigação das sequelas