Por Lunde Braghini Junior – Jornalista e mestre em comunicação (UnB) É interessante ler com “óculos de Walter Benjamin” uma crônica escrita por Machado de Assis aos vinte anos de idade, em 1859. Trata-se de “A Reforma pelo Jornal”, publicada numa revista chamada “O Espelho”, bancada e dirigida por um amigo, Francisco Eleutério de Sousa, e editada na tipografia de Francisco de Paula Brito, o célebre editor negro brasileiro. “O Espelho – Revista semanal de literatura, modas, indústria e artes” mereceu uma edição fac-similar da Biblioteca Nacional, em 2008. Artigo primeiro do número 8, de 23 de outubro de 1859, “A Reforma pelo Jornal” pode ser acessado facilmente nos sites de busca. Não é um momento qualquer na vida de Machado de Assis. No ano anterior, o “escritor em construção” já havia publicado um vigoroso ensaio que, já no título, mostrava a amplitude de sua visão e perspectiva: “O passado, o presente e o futuro da literatura” – no qual a nossa literatura aparecia como um lugar essencial para a realização de um “7 de Setembro” cultural. A ideia de Machado era de quem 1822 se fizera um 7 de Setembro apenas político. A independência política, por isso, precisava ser complementada também por uma independência cultural. Quinze anos mais tarde, em 1873, no contexto do cinquentenário da independência, Machado aprofundaria a reflexão sobre o tema no marcante ensaio “Instinto de Nacionalidade”. “O Espelho” foi um foguete – e um foguete negro – construído na medida para Machado de Assis. Ele assina a maioria dos “artigos de fundo” – nome que se dava à matéria principal – nos 19 números que teve a revista, o que dá conta da aposta que se fazia sobre seu talento. Além disso, cabe a ele, em todos os números, com uma ou outra exceção, escrever quase tudo o que se refere a teatro, em exercício vívido de jornalismo cultural. Jean-Michel Massa, pesquisador que se dedicou a biografar a juventude de Machado e depois a estudar a literatura cabo-verdiana, atribui ao escritor a autoria de 33 textos na revista, ampliando uma conta de José Galante de Sousa. Destes, só uns poucos foram incluídos, como “crônicas”, na primeira coleção de suas obras completas (Edições Jackson, 1938), um deles, “A Reforma pelo Jornal”. O texto mereceu republicação por volta de 1965, em livro de Luiz Amaral, jornalista natural de Ilhéus que se distinguiu na imprensa nacional e foi um pioneiro nos estudos sobre jornalismo. “Reprodução amiudada” “A Reforma pelo Jornal” esboça ideias ricas com as quais o leitor brasileiro se familiarizaria muito mais tarde, quando um autor alemão, Walter Benjamin, começou a ser traduzido entre nós. Contém uma espécie de teoria da comunicação, que ficou, inexplicavelmente, fora da coletânea “O Livro e o Jornal”, na qual a Penguin e a Companhia das Letras coligiram escritos de Machado, inclusive de “O Espelho”, em 2011. O poder criador da palavra, oral e escrita, é evocado por Machado antes de abordar a reprodução técnica da escrita – materializada primeiro na edição tipográfica de livros e a seguir de jornais –, mostrando as grandes implicações políticas da propaganda no jornal para a construção da opinião coletiva – com foco no operário explorado – e para a promoção da “reforma”. De que reforma e de que jornal fala Machado? A reforma é a social, a democrática, a proletária. Machado não usa, no momento, a palavra revolução, mas a aproveita em outros textos. O jornal – cuja distribuição a todos é facultada por sua “reprodução amiudada” – é caracterizado por metáforas como “pão do espírito” e “hóstia da comunhão social”. Machado concebe esse jornal como um espaço de conversa, de diálogo, no qual a pessoa que o ler, hoje, pode tomar a palavra amanhã para se posicionar acerca do que leu. Talvez com olhos postos nessa caracterização, um grupo de jovens cearenses criou, nos anos 1890, um jornal chamado “O Pão”, produzido pela “Padaria Espiritual”, e evocado nos versos de uma canção de sucesso do compositor cearense Ednardo (“Olha o padeiro entregando O Pão / de casa em casa, entregando o Pão”). O fato é que a transformação do jornal em mercadoria o fez ser comparado, desde há muito, a salsichas – a coisas que se a gente soubesse como são feitas jamais as consumiria. A reprodutibilidade técnica da escrita não é o foco, mas um pressuposto de Walter Benjamin quando analisa, no célebre ensaio sobre “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, as implicações – tanto para a revolução quanto para a contrarrevolução – da reprodução técnica do som (no disco e no rádio) e da imagem (na fotografia e no cinema). De algum modo, o passo adiante de Walter Benjamin em relação a Machado é de mostrar a necessidade de uma reforma não “pelo” mas “para” o jornal. Isto é, seriam precisas transformações revolucionárias para que o jornal pudesse vir a servir como esse imaginado espaço de diálogo social, no qual pessoas que foram reduzidas a consumidoras de informação, interpretação e opinião também tomem da pena e se tornem produtoras de textos jornalísticos. Em “O autor como produtor”, Benjamin reporta a existência de um jornal desse tipo, em operação na União Soviética dos anos 1920. Um dos aspectos ideológicos de nosso tempo presente é de que a comunicação digital e a “revolução digital” dispensariam a revolução social e até a substituiriam. A internet e as redes sociais materializariam uma sociedade pós-comunicação de massa, na qual cada indivíduo tomaria a palavra, e as transformações se acelerariam num sentido participativo e democrático. Essa ilusão contemporânea diminuiu um pouco nos últimos 10 anos, à medida que a atuação política dos algoritmos de inteligência artificial das chamadas Big Techs começou a ser exposta como fator de “seleção reversa” (de “promoção do pior”) e de criação de novos fascismos e nazismos, distribuindo, sem novidade, o pão que o diabo amassou em nome do pão do espírito. Brasil Walter Benjamin morreu em 1940, fugindo do nazismo e do fascismo. Vinte anos depois, três volumes
Intelectual e ativista do feminismo negro Lélia Gonzalez é a homenageada do Projeto Memória, da Fundação Banco do Brasil
Por Schuma Schumaher, Coordenadora Geral da primeira edição do projeto e responsável pela organização dos seminários nesta segunda edição revitalizada. Março de 2025 1ª Edição – 2011 – 2015 Lélia Gonzalez: O feminismo negro no palco da história Realizado pela Fundação Banco do Brasil desde 1997, o Projeto Memória é uma tecnologia social de educação que visa difundir a obra de personalidades que contribuíram significativamente para a transformação social, a formação da identidade cultural brasileira e o desenvolvimento do país. O objetivo é resgatar, difundir e preservar a memória cultural brasileira por meio de homenagens a personalidades que contribuíram para a transformação social e para a construção da cultura nacional. Na edição de 2011 do Projeto Memória, a Fundação Banco do Brasil, escolheu homenagear Lélia Gonzalez, em parceria com a Redeh – Rede de Desenvolvimento Humano. Para essa edição foi elaborado 20 réplicas da exposição Lélia Gonzalez; 4 mil kits biblioteca (composto por livro Fotobiográfico, DVD do documentário e caixa para acondicionar o material); 4 mil kits pedagógicos (composto por dois almanaques históricos e caixa para acondicionar o material); e o website da homenageada. As réplicas da exposição foram distribuídas para organizações do movimento negro, comprometidas com a superação do racismo e das desigualdades sociais e que tinham endereço fixo. Os kits biblioteca foram, prioritariamente, encaminhados para organizações do movimento negro, núcleos de pesquisas sobre relações raciais das universidades, redes e organizações não governamentais voltadas para a superação do racismo, associações de comunidades quilombolas, comunidades de terreiro e entidades afins. Já os kits pedagógicos foram distribuídos em eventos locais para movimentos sociais, comunidade escolar e entidades afins e contou com debates sobre a temática das desigualdades de gênero e raça. 2ª Edição – 2024 – 2025 Lélia Gonzalez: Caminhos e Reflexões Antirracistas e Antissexistas. Em homenagem aos 90 anos do nascimento de Lélia Gonzalez, o Projeto Memória volta a homenageá-la revitalizando a proposta anterior de resgate da trajetória e obra da escritora e ativista em uma série de atividades itinerantes por 7 capitais brasileiras até junho de 2025. A iniciativa já passou por Salvador (BA), Belo Horizonte (MG), São Luís (MA), Brasília (DF), fica até 7 de abril no CCBB Rio de Janeiro, e terá sua próxima parada em Porto Alegre (RS) , finalizando em maio em Belém (PA). A iniciativa da Fundação Banco do Brasil, será, nesta 2ª edição, produzida pela Associação Amigos do Cinema e da Cultura (AACIC), e consiste na apresentação do seminário e da exposição Lélia Gonzalez: Caminhos e Reflexões Antirracistas e Antissexistas, produção de um documentário sobre a homenageada, com acessibilidade de Libras, audiodescrição e legendas, para garantir o acesso a todos os públicos. O filme, de 32 minutos, será exibido nas grades de programação de TVs públicas, comunitárias, universitárias e legislativas. Completam o Projeto Memória 2024 a edição de um livro fotobiográfico em formato de e-book, e audiobook em formato pdf gratuito e online. Na ocasião, também será apresentado o Almanaque Pedagógico sobre Lélia Gonzalez, uma ferramenta educacional abrangente e inovadora, sugerindo recursos educacionais acessíveis para professores, educadores e alunos de todos os níveis de ensino. Na abertura do evento, em maio de 2024, na cidade de Salvador (BA) foi inaugurada a Mostra Educativa com 18 painéis representando os caminhos percorridos por Lélia, bem como o Seminário sobre seu legado, que contou com a participação de pensadoras/es e ativistas negros, entre eles Edson Cardoso, do IROHIN que destacou momentos importantes da trajetória de Lélia e sua contribuição pioneira para o debate sobre o racismo e sexismo na sociedade brasileira. Ao longo da realização do projeto, serão alcançadas mais de 24 mil pessoas, em atividades presenciais, com um público de mais de 14 mil estudantes das redes públicas de ensino.