Tese de Doutorado – Pretoguês: re-existência das línguas africanas

O argumento central é de que os chamados ‘erros’ de português, por se afastarem da norma padrão da língua portuguesa, na verdade, ‘fazem parte do processo evolutivo do português em contato com as línguas africanas

Por América Lúcia Silva Cesar

Em boa hora tenho notícia, através do Prof. Dr. Edson Cardoso,  da tese intitulada Pretoguês: um estudo educacional a respeito do português influenciado pelas línguas africanas nas escolas de Angola, Brasil e Moçambique, de autoria de Sheila Perina de Souza, realizada sob orientação dos professores Valdir Bazortto e Daniel Nivagara, no âmbito do Convênio Acadêmico Institucional celebrado entre a Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e a Faculdade de Educação e Psicologia da Universidade Pedagógica de Maputo. 

Defendida em 2024, em 280 páginas escritas em português, a tese se propõe a analisar as imagens do português influenciado pelas línguas africanas nos discursos de professoras de escolas angolanas, brasileiras e moçambicanas. Com isso, pretende contribuir para uma pedagogia multilingue, antirracista e culturalmente sensível, no aprendizado da leitura em sala de aula. O argumento central é de que os chamados “erros” de português, por se afastarem da norma padrão da língua portuguesa, na verdade, “fazem parte do processo evolutivo do português em contato com as línguas africanas” (pág. 10), o que denomina pretoguês. Inspirada em Lélia Gonzalez  e Mingas, define como pretoguês as variedades populares do português influenciadas pelas línguas africanas e defende que a estigmatização do pretoguês no contexto escolar faz parte de um sistema amplo de opressão social, racial e étnica, que não se restringe apenas ao aspecto linguístico. Ao cabo, postula o ensino do pretoguês na escola, no bojo de uma pedagogia mais sintonizada com a realidade linguística e cultural dos seus falantes.

Interessante observar que, já no início do texto, constata-se a coerência da autora no enfrentamento à invisibilização da presença das línguas africanas na escola, ao apresentar a tradução do resumo não apenas numa língua europeia, como é comum em textos acadêmicos deste tipo, mas também na língua changana. E no decorrer do estudo, observa-se essa coerência também no embasamento teórico escolhido, ao trazer conceitos como necropolítica, colonialismo, e o próprio pretoguês, baseados nas contribuições de autores africanos ou de ascendência africana, comprometidos com a crítica ao enraizamento do racismo no discurso científico e pedagógico.

O capítulo 1, com 92 páginas, está dividido em duas partes. Na primeira parte, discute as implicações do colonialismo em suas estratégias de obstrução das línguas nativas em Angola, Brasil e Mocambique, e como a necropolítica atua no panorama das línguas, principalmente no português falado. Nessa parte também a autora demonstra como o pretoguês se apresenta nas diversas variedades do português falado como expressão de resistência cultural e política dos povos. Resumindo: o pretoguês como re-existência das línguas africanas na fricção com as políticas linguísticas do colonialismo. 

No segundo capítulo, vai olhar para as imagens e atitudes linguísticas no discurso de educadores e reafirmar o pretoguês como criação coletiva, tecnologia popular africana, que se legitima nas compressões comunicativas e que merecem consideração e estudo no ensino formal nas escolas.

E nos três últimos capítulos apresenta a pesquisa nos diversos contextos dos países analisadas, com farto material etnográfico e linguístico. Fica evidente o percurso interseccional das práticas e políticas linguísticas a aproximar o pretoguês de uma multilíngua que congrega contribuições de diversas línguas africanas e do português. 

Pelo fôlego do trabalho, é natural que haja lacunas, principalmente quando se trata de uma descrição mais exaustiva das implicações das línguas nativas – não só as africanas- no que se chama português falado no Brasil, que se supõe possam também influenciar o pretoguês brasileiro. Contudo, a descrição linguística não é o foco do trabalho, e sim a análise dos discursos que moldam o imaginário das línguas em questão. Trata-se por isso de um estudo valiosíssimo por enfrentar e detalhar o apagamento histórico da complexidade dos usos linguísticos na diversidade enorme de falantes e realidades socioculturais no território brasileiro com foco na contribuição das línguas africanas. Por sua abrangência, abraçando também as implicações das línguas em Angola e Moçambique, o trabalho merece ser lido e debatido não só no interior das universidades mas principalmente nos espaços de formação de professores e professoras, esperando que ele tenha repercussões nos currículos escolares do ensino fundamental ao universitário. E mais do que isso, escrito numa linguagem acessível e de agradável leitura, deve ser visitado por todos e todas que se interessem em compreender melhor o panorama das contribuições das línguas africanas na relação com a língua portuguesa nesses três países.

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