Uma nova configuração da política racial

A institucionalização da questão racial é o nosso ganho, mas também pode ser a nossa derrota como atores políticos constituídos a partir do movimento social.

*Por Luiza Bairros, texto publicado no Jornal ÌROHÌN, em ago-set/2006*

As questões que apresento neste texto são motivadas pelo meu interesse em entender o que mudou na política racial brasileira, nas três últimas décadas, em consequência da ação do Movimento Negro. Considero que o aspecto central desta mudança é a falência da democracia racial como um modelo hegemônico, capaz de explicar as relações sociais entre brancos e ne­gros no Brasil.

Em retrospecto, identifico três momentos na nossa história recen­te que tornaram mais evidente o processo lento de morte desse mito: a criação do Movimento Negro Uni­ficado/MNU (1978), que resultou de um processo que envolveu vários grupos negros, principalmente no sul do Brasil; o fracasso que impu­semos às comemorações dos 100 anos da abolição e a inclusão do ra­cismo como crime inafiançável  na Constituição, em 1988; a Marcha Zumbi dos Palmares, contra o Ra­cismo, pela Cidadania e a Vida, que realizamos em 1995; e a nossa par­ticipação no processo da lll Confe­rência Mundial contra o Racismo, em 2001.

Afirmar a falência do mito da democracia racial, significa que hoje, no Brasil, não existe mais uma narrativa hegemônica que consiga, com a mesma força da formulação anterior, “naturalizar” tanto os privilégios de ser branco, como as desvantagens de ser negro. Também significa constatar que foi rompido o consenso que existia nas elites, de direita e de esquerda, sobre as formas de pensar a sociedade brasileira em termos raciais. Até por isso, entre elas, hoje, também não há propostas consensuais de tratamento do racismo e das desigualdades raciais.

Por um lado, verifica-se que o Estado brasileiro, de algum modo, incorporou iniciativas visando a superação das desigualdades raciais – seja divulgando estatísticas desagregadas por cor; adotando políticas afirmativas; criando agendas governamentais para lidar com a questão racial; ou debatendo o pro­jeto de lei do Estatuto da Igualdade Racial. Por outro lado, setores deste mesmo Estado posicionam-se de forma abertamente conflitante sobre as iniciativas que, supostamente, deveriam apoiar. Do mesmo modo, no campo acadêmico e nos meios de comunicação a cisão se verifica, principalmente no que se refere às propostas de ações afirmativas nas universidades públicas.

Embora estas iniciativas ainda sejam limitadas, elas colidem com o postulado da igualdade de oportunidades, um dos principais consensos criados com base na crença na democracia racial. Por isso, são sistematicamente contestadas pelos que se beneficiam do racismo e que, agora, livres dos limites impostos pela etiqueta racialmente democrática, manifestam suas posições racistas, sem disfarces.

Cada modelo racial gera formas de luta que lhe são compatíveis. E, se o modelo que tradicionalmente existia no Brasil se esgotou, então isto também tem impacto sobre o Mo­vimento Negro. É evidente que, a partir de uma pauta geral de com­bate ao racismo, que vigorou até os anos 80, foram se especificando diversas configurações da identidade racial e modos diversos de organi­zação política, que expressam o fato de que os lugares que ocupamos configuram diferentes modos de experimentar o racismo e seus efeitos.

Assim, vivemos em meio a uma maior tendência à organização tanto por segmentos da população negra – mulheres, lésbicas, comunidades rurais quilombolas, juventude – como por áreas da vida social – arte, cultura e religiões de ma­triz africana. saúde, educação. comunicação, pesquisa, etc. As chamadas “entidades negras”, nascidas nos anos 70 e 80, geralmente de­votadas a um amplo espectro de temas concernentes à população negra, hoje se soma um leque de organizações mais ou menos estruturadas, que incluem, além das ONGs, redes e fóruns.

A diversidade na “especificação de identidades negras” revela, por um lado,o amadurecimento da nos­sa compreensão do racismo como um fenômeno multifacetado pelas suas intersecções com diferentes dimensões da nossa vida em sociedade. Por outro, coloca a possibilidade de uma fragmentação, na hipótese de que cada segmento que se reivindica como Movimento Negro, ou que emergiu no seu rastro, passe a agir como se fosse, individualmente, capaz de responder aos desafios desta conjuntura.

Ainda que de modo diferente do que ocorre nas elites, não há dúvida de que também já não temos uma base mais sólida para criar consensos, para elaborar leituras próprias sobre como o racismo passou a operar em consequência de nossa própria ação, e as estratégias para o seu enfrentamento. Tanto é assim, que nenhuma das duas posições divergentes quanto às motivações da Marcha Zumbi +10, realizada em Brasília, em novembro de 2005, conseguiu gerar um processo que, potencializado pela visibilidade da questão racial no processo político, pudesse vir a apontar alternativas para o encaminhamento das nossas lutas.

Neste novo cenário, portanto, me parece que o grande desafio é assegurar que os termos da disputa por um outro modelo, ou uma ou­tra narrativa sobre as relações sociais entre brancos e negros no Brasil, sejam definidos a nosso favor. O que temos feito até o momento, sem dúvida, rompeu a hegemonia branca na interpretação da experiência negra no Brasil. Contudo, isto ainda não tem sido suficiente para garantir a nossa hegemonia na definição do que é racismo, do vocabulário aceitável para discuti-lo e das estratégias necessárias para corrigir os privilégios e as desvantagens sociais associados ao pertencimento racial.

Sem pretender dar conta da reflexão que eu mesma propus, adianto o que me parece minimamente necessário para efetivar a nossa participação no novo quadro da política racial no Brasil. Construindo consensos sobre a sua nova configuração e, dentro dela, sobre o Movimento Negro, seria preciso fortalecer as condições de produção de nossos discursos e nossas práticas em vários âmbitos – acadêmico, artístico, nas organizações politicas de base, nos veículos de comunicação, entre outros.

Paralelamente, seria também necessário aprofundar a compreensão sobre o papel do Estado, no que tange a seus limites e possibilida­des de internalizar aspectos importante de nossas demandas, que só podem se realizar pela via das ações públicas. lsso implica considerar novos atores, mulheres e homens, geralmente negros, que se inseriram em organismos de governo – fede­ral, estadual e municipal – com a tarefa de fazer avançar uma  agenda que hoje se abriga sob o nome genérico de “promoção da igualdade racial”. Do ponto de vista do Estado, tais atores, para todos os efei­tos, “representam” os interesses da comunidade negra.

Entretanto, vale lembrar,a expressão “promoção da igualdade racial” não corresponde exatamente aos termos construídos pelo Mo­vimento Negro. Este deslizamento de significado pode levar a que o “combate ao racismo”, centro da política até o momento, se torne mero pretexto para uma prática que privilegia a sobrevivência de organizações – governamentais ou não – assegurando a participação de alguns na esfera publica, em detrimento de cerca de 80 milhões de mulheres e homens negros cujos interesses deveriam representar.

Além disto, a nova configuração da política racial brasileira, ao transpor a questão racial para âmbitos que extrapolam o próprio Movimento Negro, também impõe a necessidade de (re)pensar outras arenas de ação política, a exemplo do parlamento. Assim, de uma consideração geral de que somos a maioria da população, devemos passar a uma outra que nos obrigue a agir como a maioria do eleitorado, e conquistar a representação parlamentar correspondente!

A institucionalização da questão racial e o nosso ganho, mas também pode ser a nossa derrota como atores políticos constituídos a partir do movimento social. Os afro-norte-americanos, como lembra Michael Mitchell, adquiriram maior inclusão no processo político [mas] têm, simultaneamente perdido a capacidade de aí formular questões diretamente em termos raciais, em decorrência da “diminuição de seu grande capital político, particularmente do poder mo­ral, derivado da identidade e da coesão de grupo construídas no período de insurgência pelos direitos civis.”

Nossas possibilidades futuras dependem das escolhas políticas que fizermos com base nas leituras desta conjuntura, a qual não permite saídas individuais. O racismo mudou como resultado da nossa ação, mas, no fundamental, ainda exige que nos reconheçamos como parte de uma comunidade de destino.

* Luiza Bairros (1953–2016) foi intelectual, ativista do Movimento Negro, e ministra-chefe da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial do Brasil entre 2011 e 2014.

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