Rebeca Oliveira Duarte
Educadora e ativista antirracista. É professora de Educação das Relações Étnico-Raciais da UFRPE e integrante do NEAB/UFRPE. Foi advogada do SOS Racismo/PE e do Observatório Negro.
Falar sobre mudanças sociais, em um contexto de longa transição de sistemas políticos e econômicos, precisa começar pela lembrança de que o mundo nunca foi fácil. Sempre foi, globalmente, disputa; nossa história é manifesta em tensões territoriais, confrontos de grupos, em busca incessante de adaptação ao meio, elaboração e construção de conhecimentos próprios para essa adaptação e para a produção de elementos essenciais à vida.
Mas é fato que, com o colapso global provocado pelo capitalismo, e com o movimento de re-hegemonização do nazifascismo, põem-se em ameaça contínua e crescente as pouquíssimas conquistas dos movimentos de resistência dos grupos sociais subalternizados. Isso nos dá a percepção vívida de que pouco avançamos nos derradeiros anos em direção a um mundo de justiça social. O apelo midiático é de “fim dos tempos”. Mesmo que tenhamos o registro histórico de vários “finais de mundo”, a sensação geral parece apontar a uma desmobilização em torno de projetos concretos de um mundo novo e da esperança de que este seja possível.
Apesar de que o colapso global seja uma “realidade” apresentada como um cenário distópico de sociedades controladas por inteligência artificial, o tecnocapitalismo genocida não é o fim da história, nem de nossas esperanças. Um lembrete óbvio, mas necessário. Vivemos História, que é processo, ação e transformação. Mas não uma História linear e determinista; seguindo Sankofa, a circularidade do Tempo permite que o percurso passado / futuro nos ensine, nos eduque e nos oriente no caminho que seguimos.
Sankofa, como parte de uma cosmopercepção afrodiaspórica, dialoga com o Sumak Kawsay (Bien Vivir) andino, em que a integralidade das nossas relações interseres e intertempos nos retira do especismo, do antropocentrismo, do racismo, do imediatismo e do individualismo que estão na base do atual colapso da humanidade. Percebam que se trata de projetos não apenas espirituais, mas também socioeconômicos, de mundo. Essa integralidade nos reorganiza em um mundo diverso. É através de o que é esse mundo diverso que proponho pensarmos no projeto de Reparação. Ou, em outras palavras: imperioso compreender que tratar de Reparação em mundos forjados pelo racismo, como elemento estrutural e estruturante, é tratar da preparação para um outro mundo possível, esse mundo diverso, que não pode ser lido de forma reta, linear e desenvolvimentista por ser fruto da circularidade da Vida.
Vejam bem: o sentido de “reparar”, no modo linear, é buscar corrigir algo feito no passado que causou um dano. No campo do conceito cunhado pelo Movimento Negro, estamos falando de danos reais no contexto do racismo, que são muitos, imensos e complexos, incrustrados na formação mesma dos estados ficcionalmente “nacionais”. As perguntas que acompanham esse tema são: é possível reparar a escravização e todas as torturas vividas pelos povos negros e indígenas a partir dela? É possível reparar, ainda nesse sentido, as políticas eugenistas de limpeza racial que resultaram na violência policial sistêmica, no encarceramento massivo da população negra e nas profundas assimetrias socioeconômicas? Ou, em outras palavras, de que forma políticas públicas em um Estado racista vão de fato reparar os danos de algo que a sua própria estrutura fundamental fomenta? Corremos o risco, nesse debate, de confundirmos a Reparação com a Mitigação se nos mantivermos discutindo políticas reparativas com os mesmos instrumentos institucionais causadores dos danos que queremos reparar.
Aqui temos a distinção necessária entre reparar e mitigar. A Reparação, como conceito, precisa vir em torno de um projeto de mundo diverso na circularidade do Tempo de Sankofa e do Sumak Kawsay que ponha os povos subalternizados de hoje no lugar de decisão sobre o mundo que quer viver. É um movimento que “volta” ao passado para retomar um novo ponto de partida desde lá. Quando se diz que Exu mata ontem um pássaro com uma pedra que ele só atirou hoje, temos a lição necessária para saber quais passos precisamos dar para resolver um problema: voltar ao exato ponto em que esse problema foi projetado.
Essa cosmopercepção circular aqui proposta, para tratar de Reparação, é algo que será mais simples compreender quando não pensamos em reparar olhando a vida no contexto da linearidade. Voltar ao ponto do passado em que os danos futuros foram projetados é voltar à encruzilhada do Tempo e retomar as outras possibilidades de mundo, que ali não foram seguidas, e adotar nossas escolhas que àquele ponto não fora possível fazer. Enfim, é negar veementemente o fim da História e não compactuar com a visão linear que nega Sankofa e que joga o Bien Vivir em uma condição de utopia. É negar a ideologia que nos impõe como fato natural e imutável o Estado Nacional e sua estrutura racista, o capitalismo e sua exploração de nossas forças vitais, e que nos retira da realidade ancestral de que, sim, temos outras formas organizativas, outros projetos e outras práticas de mundo possível em que somos de fato participantes.
Para lutarmos por Reparação, precisamos primeiramente reconhecer que o pensamento afrodiaspórico e dos povos de Abya Yala têm outros projetos de mundo e de sociedades, e assim como determinados segmentos sociais se organizam em defesa de projetos eurocentrados de capitalismo e socialismo, por exemplo, podemos nos organizar politicamente em defesa desses outros projetos. O Bem Viver enquanto projeto de mundo, com a percepção do Sankofa, pode retirar-nos dessa ideia linear e determinista da História e nos fazer acessar a circularidade do Tempo, retomando-nos como o sujeito da encruzilhada, capaz de seguir o outro caminho não seguido, mas em potência. É sobre retomar o papel de sujeitos integrados e coletivos, desde sempre.
Óbvio que “quem tem fome, tem pressa”. Precisamos hoje enfrentar o mundo posto, no termo que ele se nos apresenta. Daí que as políticas públicas, vindas de um Estado estruturalmente racista, são o reconhecimento necessário das profundas injustiças praticadas por esse mesmo Estado. Tais políticas e ações, embora não sejam uma real Reparação, são a Mitigação das sequelas de projetos racistas e eugenistas praticadas pelas instituições no país. Precisamos de processos políticos, econômicos, administrativos, culturais e legais que, mitigantes das desigualdades raciais, sustentem nossa humanidade e refreiem o genocídio e o epistemicídio seculares na constituição dos atuais estados nacionais e das atuais nações sem estado no planeta.
O que nos cabe agora, no meio desse colapso global em andamento, é entender a Reparação a partir de seu significado profundo de Sankofa. Políticas públicas de Mitigação são parte de um movimento de resistência, mas reparar deve ser a base epistemológica de um projeto de mundo novo e ancestral. Reparação não é só acrescentar o estudo da cultura africana, afro-brasileira e dos povos indígenas na sala de aula; é derrubar os muros da sala de aula e retomar o princípio de comunidade que constrói seus processos educativos. Não é só tratar dos conhecimentos afrodiaspóricos e originários de Abya Yala como “saberes” que dialogam com a “ciência”, é enfrentar o próprio conceito eurocêntrico de ciência e viver no mundo as ciências das sociedades africanas e da Diáspora, assim como as ciências das sociedades originárias. Não é apenas produzir escritos e garantir o lugar de fala, mas retomar a força da escuta para a reorganização dos movimentos populares. Nos sentidos que Sankofa aponta, precisamos garantir os povos como sujeitos para a elaboração consciente de outras escolhas de mundo possível.
Mediante a Reparação como projeto político-econômico, socioambiental e espiritual de mundo, é que reconheceremos exatamente quem fomos, quem somos e quem poderemos ser na encruzilhada, ponto de força dos caminhos de consciência histórica.