Por Kleber Chagas Cerqueira
À memória de meu grande amigo Astral Melo
En realidad, el racismo está inscrito en el sistema (…) La conquista se hizo por la violencia; la superexplotación y la opresión exigen el mantenimiento de la violencia, y por ello la presencia del ejército. Allí no habría contradicción si el terror reinase en toda tierra: pero el colono disfruta allí, en la metrópoli, de los derechos democráticos que el sistema colonial niega a los colonizados; (…) El colonialismo niega los derechos del hombre a los hombres que ha sometido por la violencia, que mantiene por la fuerza en la miseria y en la ignorancia; por lo tanto, como diría Marx, en estado de “subhumanidad”.
J. P. Sartre. Colonialismo y Neocolonialismo. (Situations, V). Editorial Lozada. Buenos Aires. 1965.
Refletir sobre as origens históricas do racismo nos remete ao escravismo, ao complexo sociocultural, jurídico e político que justifica a escravização de um homem, ou de uma mulher, por outro homem, ou por outra mulher.
Se as primeiras experiências humanas de escravização se deram num contexto transparente de violência direta (escravização por guerras de conquistas ou por dívidas), a prática foi, ao longo do tempo, sendo “aprimorada”, substituída a transparência da violência pura e simples por dispositivos jurídicos, políticos e culturais (especialmente religiosos) que justificavam, por suposta superioridade de raça, ou negação da própria humanidade, a escravização de uns por outros.
Nessa perspectiva histórica, não foi o colonialismo que inventou o racismo, já que há muitos registros de escravização em sociedades humanas não colonialistas.
Mas foi o colonialismo que imprimiu ao racismo escala industrial, especialmente em sua versão europeia: na virada do século XIX para o século XX, mais de três quartos das regiões do planeta e mais de quatro quintos de sua população já haviam sido ou ainda eram colônias de potências imperialistas europeias. Ou “protetorados”, na fórmula fofa e paternal do Império Britânico, o maior de todos à época, aquele onde “o sol nunca se punha”.
Aliás, se uma das bases da chamada acumulação primitiva de capital, essencial à revolução industrial e estopim do sistema mundial moderno, foi o colonialismo da era moderna, não podemos esquecer que a cor dessa acumulação foi a cor preta, com a transformação de pessoas africanas em mercadorias para as Américas.
Daí uma questão de profundas implicações filosóficas e epistemológicas: como foi possível ao Ocidente europeu renascentista, dos séculos XIII a XIX, falar em humanismo num mundo que desumanizava a maioria dos seres humanos?
A esse respeito, uma referência muito potente, e ainda lamentavelmente pouco conhecida no Brasil, é a pensadora cubano-jamaicana Sylvia Wynter, cujo primeiro texto publicado em língua portuguesa compõe a brilhante antologia “Pensamento Negro Radical”, da N1 Edições, de dezembro de 2021, organizada por Clara Barzaghi, Stella Z. Paterniani e André Arias.
Sylvia Wynter se dedicou a investigar o humanismo e a história da humanidade a partir da crítica da universalização do homem branco europeu como parâmetro para humanidade, empreendimento que termina por desconstruir o próprio conceito ocidental de modernidade.
A crítica de Sylvia Wynter propõe uma forma radical de humanismo, herdeira dos mistérios das marés, não das caravelas que as tentaram colonizar.1
Partindo do reencontro com sua ancestralidade fincada na economia das plantations caribenhas, realidade socioeconômica praticamente idêntica à dos latifúndios escravocratas que colonizaram o Brasil, Sylvia Wynter identifica ali a desumanização das negras e negros, das índias e índios, como condição de reprodução daquele sistema colonial.
Essa herança colonial nos impediu de realizar plenamente a emancipação humana, uma vez que este sistema se baseava na destituição de humanidade de boa parte dos seres humanos. Para Wynter, assim como para Fanon (2008), a desumanização das pessoas negras implica a desumanização de toda a humanidade.
Em seus estudos e escritos, batendo-se contra a “lógica-plantation da universidade”, que pressupõe a universalidade da história branca europeia, Sylvia Wynter se propunha a uma revolução intelectual, a partir de verdadeira refundação epistemológica, que quebrasse essa lógica colonialista e refundasse o humanismo em bases radicais, como emancipação completa, sem exceções, do ser humano.
Tendo ido estudar artes e literatura ainda jovem, no King’s Colege, em Londres, quando a Jamaica ainda era parte do Império Britânico, Sylvia torna-se professora na Universidade das Índias Ocidentais (UWI), responsável pela cátedra de literatura hispânica e escreve, em 1962, ano em que a Jamaica se torna independente, seu primeiro e único romance: The Hills of Hebron, cujo título original era The End of Exile (o fim do exílio), em que buscava anunciar o fim da história exilada da Jamaica e a refundação dessa história, desafiando “o sistema central de crenças sobre as quais nossas sociedades foram fundadas, a crença de que a negritude seja um dado de inferioridade e da branquitude, um dado de superioridade”.2
Em seu ativismo artístico e político, Sylvia também foi uma das fundadoras do Jamaica Journal, para o qual contribuiu com vários artigos e ensaios, e escreveu o espetáculo Maskarade, peça exemplar do teatro jamaicano pós-independência.
Entre 1974 e 1977, foi professora convidada no Departamento de Literatura da Universidade da Califórnia, em San Diego, para coordenar um programa interdisciplinar sobre literatura do Terceiro Mundo. Em 1977, vinculou-se à Universidade de Stanford, como responsável pela cátedra de Estudos Africanos e Afro-americanos, e aí permaneceu como professora emérita, em reconhecimento por sua trajetória de pesquisa e reflexão sobre a formação do Caribe na modernidade a partir da invasão colonial.
No artigo citado anteriormente, que compõe a antologia “Pensamento Negro Radical”, No humans involved: an Open Letter to My Colleagues (Nenhum Humano Envolvido: uma carta aberta a meus colegas), Wynter parte do fato noticiado pela imprensa estadunidense, chocante, ainda que muito didático, de que funcionários públicos do sistema judicial de Los Angeles rotineiramente usavam o acrônimo “NHI”, significando “No humans involved” (literalmente: nenhum humano envolvido!) para se referirem a qualquer caso envolvendo violação de direitos de homens negros jovens desempregados, habitantes dos guetos do centro da cidade.3
Evidentemente, observa ela, ao classificarem essas pessoas dessa maneira, aqueles funcionários públicos estavam concedendo sinal verde para a polícia de Los Angeles tratar como bem entendesse tais pessoas.
O paralelo dessas análises e reflexões com a atitude da Polícia Militar do Rio de Janeiro, em suas incursões nas favelas da cidade (e das PMs pelo país, em geral), chega a ser desconcertante!
Diante de argumentos complacentes com a violência policial nas comunidades periféricas Brasil a fora, cujo endurecimento, inclusive, rende muitos votos a cada eleição, não é lícito supormos que existe um protocolo “NHI” não escrito na concepção e execução dessa violência policial?
São tantos e tão revoltantes casos, que se acumulam tragicamente, que se lembra aqui dois muito particularmente chocantes: o da pequena Ágata, baleada e morta dentro de uma kombi, em 20/9/2019, na comunidade da Fazendinha, no Complexo do Alemão, durante operação policial sem qualquer relato de confronto; e o do menino Marcos Vinícius, baleado e morto pelas costas, com sua mochila de material escolar, a caminho da escola, no Complexo da Maré, na Zona Norte do Rio, em 20/6/2018.4
A questão central levantada por Sylvia Wynter em sua carta aberta a seus colegas das universidades era: como pode essa cultura violenta e desumanizadora do “NHI” ter se espalhado e ainda permanecer em amplos segmentos da burocracia estadunidense, composta por pessoas altamente qualificadas formadas pelo sistema universitário dos EUA? Ou seja, uma burocracia formada por aqueles que nós mesmos (ela fala para seus pares) teríamos educado?
E, internalizando outra vez as reflexões de Sylvia Wynter, como ainda é possível que esse protocolo “NHI” não escrito esteja tão amplamente disseminado em nossa sociedade e, particularmente, em corporações cujos integrantes são, em sua maioria, egressos de nosso sistema universitário?
E aqui se revela, com toda crueza, a urgência de não apenas falarmos da África que nos habita, como lindamente incluído na Lei de Diretrizes e Bases da Educação pela Lei nº 10.639/2003, mas também das pedagogias das ruas, das encruzilhadas, dos terreiros e dos tambores, como lindamente relatadas por Gonçalves (2006), Rufino (2019) e Simas (2019).
As impressionantes atualidade e pertinência das reflexões de Sylvia Wynter sobre nossa realidade (sim, ela realmente fala de nós!) fazem pensar na importância da descolonização não só de nossas bibliografias acadêmicas, mas também dos paradigmas conceituais que vimos aprendendo, aceitando e reproduzindo há séculos.
Por exemplo, por que não começarmos a datar a democracia estadunidense a partir da década de 1960? Sim, porque não podemos falar que é democrática uma sociedade que convive e tolera a segregação racial, não é mesmo? Então paremos de considerar (e de ensinar) que a democracia nos EUA começou em 1776. O que se teve ali, antes da luta e da afirmação dos direitos civis da década de 1960, foi um sistema com aspectos democráticos, recusados para parcela expressiva da população. Mais ou menos como a democracia ateniense, para a qual há muito já colocamos aspas sem maiores dificuldades.
Da mesma forma, por que não revermos a forma como temos aprendido e ensinado a história europeia, chamando sua expansão colonialista pelo resto do mundo não por eufemismos eurocêntricos do tipo “expansão comercial e marítima europeia” ou “competição imperialista”, mas pelos verdadeiros nomes: roubo, pilhagem, racismo e desumanização!
Assim, reescrevendo a história a contrapelo, podemos revelar a máxima benjaminiana de que não há um só monumento de cultura que não seja também um monumento de barbárie.
E, ao mesmo tempo, perceber que se a tese parece muito pessimista com o futuro da humanidade, ela só o é se ficarmos presos ao conceito ocidental, colonialista, do humano. A partir do momento em que nos libertamos dele, um mundo brilhante de diversidade cultural se revela e convida a construir o futuro da humanidade como diálogo respeitoso e solidário entre diferentes culturas.
Sylvia Wynter é uma urgente e necessária companhia nessa jornada.
Kleber Chagas Cerqueira é historiador e cientista político.
Notas.
1 Paterniani, Belisário e Nakel (2022).
2 Ibdem.
3 O episódio a que se refere a carta aberta de Sylvia Wynter é o do espancamento, em 1992, por policiais de Los Angeles, filmado por moradores, do taxista negro Rodney King, que não estava armado, com grande repercussão na mídia. No julgamento, que decidiu pela absolvição dos policiais, o júri era composto por dez homens brancos, um latino e um asiático. À sentença seguiram-se 6 dias de protestos nas ruas de Los Angeles, que ficaram conhecidos como Rodney King Riots, os distúrbios de Los Angeles, com um saldo de 12 mil pessoas presas, mais de 2 mil feridos e 63 mortos pelas forças de segurança.
4 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/09/23/entenda-como-foi-a-morte-da-menina-agatha-no-complexo-do-alemao-zona-norte-do-rio.ghtml e https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/adolescente-morto-na-mare-foi-atingido-por-disparo-pelas-costas-diz-laudo.ghtml. Pesquisados em 10/5/2025.
Referências.
ARIAS, André; BARZAGHI, Clara; PATERNIANI, Stella Z. (2021). Pensamento Negro Radical. São Paulo: N1 Edições.
FANON, Frantz. (1968). Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
_____________. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUFBA.
GONÇALVES, Ana Maria. (2006). Um defeito de Cor. Record. São Paulo.
PATERNIANI, BELISÁRIO E NAKEL (2022). O Humanismo Radical de Sylvia Wynter: uma apresentação. MANA 28(3): 1-28 2022. Disponível em: https://www.scielo.br/j/mana/a/YQFjhBWtvSHdCZXGG6kgRdJ/?lang=pt. Pesquisado em 2/5/2025.
RUFINO, Luiz. (2019). Pedagogia das Encruzilhadas. Ed. Mórula. Rio de Janeiro.
SARTRE, Jean Paul. (1965). Colonialismo y Neocolonialismo. (Situations, V). Editorial Lozada. Buenos Aires.
SIMAS, Luiz Antonio. (2019). O Corpo Encantado das Ruas. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro.
Paterniani, Belisário e Nakel (2022).